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As Mazelas da Guerra
Continua
O princípio
Assentei praça em julho de 1967, No Regimento de Infantaria nº 5, nas Caldas da Rainha
Na 3ª semana de instrução, no sábado, o nosso Alferes estava ausente, quase a acabar a instrução, apareceu um Alferes a mandar-nos transpor alguns obstáculos, num deles, rachei o calcanhar, fui para a enfermaria, mas na radiocospia não detetaram nada, fiquei todo contente
Queria era ir de fim-de-semana, para casa, entrei no autocarro que nos levava para o Campo das Cebolas, em Lisboa
Quando saí do autocarro, já não conseguia andar, apanhei um táxi, que me levou para a Rua da Paz, onde vivia o meu cunhado, irmão da minha mulher
Subi as escadas até ao 4º andar de gatas, telefonei para aminha mulher, que foi ter comigo
Passámos ali o fim-de-semana, no domingo à tarde apresentei-me no Hospital Militar, mas disseram-me para me ir apresentar no anexo, um espaço criado para receber todo o horror que chegava das três frentes de combate, um pouco mais escondido do que Hospital Militar Principal
A minha mulher acompanhou-me, e depois seguiu para casa. No dia seguinte, pelas 9 horas, uma patrulha da Guarda Nacional Republicana bateu à porta da nossa casa, ao saberem que ela era a minha mulher, dispararam o seguinte: “ o seu marido desertou, onde é que ele está?
Respondeu-lhes: “ o meu marido não desertou, está no anexo do Hospital Militar Principal, em Lisboa, deu lá entrada ontem à tarde”
Na segunda-feira fizeram-me um raio x ao pé, engessaram-no, entregaram-me duas canadianas e dissera-me para não me apoiar nele
Fiquei lá poucos dias, mas os suficientes para ver a quantidade de feridos e o estado em que chegavam
Não podia faltar uma capela, para aos domingos, quem quisesse ir à missa, mas no único fim-de-semana que lá estive, fomos informados que não haveria missa, porque a capela estava cheia com 60 caixões, que tinham chegado
Um dia, penso que andava à procura duma casa de banho, por engano, entrei num espaço grande, que me fez lembrar um berçário de uma maternidade: muitos, pequenos caixotes, todos ao mesmo nível, onde o que vi, foram olhos a mexer, um silêncio absoluto, fiquei tão perturbado, que não confirmei o que estava a ver, saí dali a sete pés, ainda que só apoiado num e nas canadianas
Passados alguns dias mandaram-me para casa de convalescença
Um dia, eu e a minha mulher tivemos de ir a Lisboa, tratar já não sei de quê, ela grávida da nossa primeira filha, com uma enorme barriga, eu apoiado nas canadianas, entrámos num autocarro, uma pessoa levantou-se para nos dar o lugar, ficou tão atrapalhada por não saber a quem dar o lugar, tive de fazer um grande esforço para não me rir, e disse a minha mulher para se sentar. Depois, outra pessoa levantou-se e eu sentei-me
Naquele tempo não havia lugares prioritários nos transportes públicos
Algum tempo depois substituíram o gesso. No novo gesso colocaram um salto com duas hastes apoiadas na perna, para não fazer força no pé
Voltei para casa, para mais uns dias de convalescença até me tirarem o gesso
Quando voltei a tentar andar sem gesso, a adaptação foi muito dolorosa, tinha muitas dores, e foram precisos alguns meses para recuperar
Fui colocado no Depósito de Indisponíveis, que funcionava num Convento, à Graça, tem uma vista deslumbrante sobre a cidade de Lisboa
Na primeira noite que lá dormi, felizmente foram poucas, tinha ido levantar a roupa da cama, estava a fazê-la, quando um soldado se abeirou e me perguntou o que me tinha acontecido
Despois de satisfazer a sua natural curiosidade, ele disse-me: “ és menino rico, tens a divisa de instruendo”!
Respondi-lhe: se soubesse a minha vida! Catalogamos os outros, pela aparência, sem nada sabermos deles
O tempo foi passando, de vez em quando, ia à consulta, o médico perguntava-me se me doía o pé, e eu respondia que sim
Em Dezembro de 1967, quando a minha filha nasceu, sentia-me inutilizado e com uma filha para criar
No dia do seu primeiro mês não a vi, passei a tarde sentado na esplanada dum café, na rua Conde de Redondo, em Lisboa, rascunhando uns versos para lhe dedicar
Não estive presente nos seus três primeiros aniversários, a tropa roubou-me os quatro primeiros anos da minha filha
Na última consulta, o médico disse-me:” já andas aqui há quase um ano, vais a uma junta médica”
No dia em que fui à junta médica, foi, também, outro, que aparentemente o que tinha era uma grande cunha
Entrámos os dois, ele foi o primeiro, olharam para ele e disseram: “ inválido para todo o serviço militar”
A seguir olharam para mim e disseram: “ apto para todo o serviço militar”.
Continua
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