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Cantiga
a uma Dama,
em forma de carta
Querendo escrever um dia
o mal que tanto estimei,
cuidando no que poria,
vi Amor que me dizia:
escreve, que eu notarei.
E como para se ler
não era história pequena
a que de mim quis fazer,
das asas tirou a pena
com que me fez escrever.
E, logo como a tirou,
me disse: Aviva os espritos,
que, pois em teu favor sou,
esta pena que te dou
fará voar teus escritos.
E dando-me a padecer
tudo o que quis que pusesse,
pude, enfim, dele dizer
que me deu com que escrevesse
o que me deu a escrever.
Eu, qu' este engano entendi,
disse-lhe:-que escreverei ?
Altos afeitos de ti,
Respondeu, dizendo assi:
e daquela a quem te dei.
E já que te manifesto
todas minhas estranhezas,
escreve, pois que te prezas,
milagres dum claro gesto
e, de quem o viu, tristezas.
Ah! Senhora, em quem se apura,
a fé de meu pensamento!
Escutai e estai a tento,
que, com vossa fermosura,
iguala Amor meu tormento.
E, posto que tão remota
estejais de me escutar,
por me não remediar,
ouvi, que, pois Amor nota,
milagres se hão-de notar:
Nota
Escrevem vários autores,
que, junto da clara fonte
do Ganges, os moradores
vivem do cheiro das flores
que nascem naquele monte.
Se os sentidos podem dar
mantimento ao viver,
não é, logo, d'espantar,
se estes vivem de cheirar,
que viv' eu só de vos ver.
üa árvore se conhece,
que, na geral alegria,
ela só tanto entristece, que,
como é noite, florece,
e perde as flores de dia.
Eu, que em ver-vos sinto o preço
que em vossa vista consiste,
em a vendo me entristeço,
porque sei que não mereço
a glória de viver triste.
Um rei de grande poder
com veneno foi criado,
porque, sendo costumado,
não lhe pudesse empecer
se despois lhe fosse dado.
Eu, que criei de pequena
a vida a quanto padece,
desta sorte me acontece,
que não me faz mal a pena
senão quando me falece.
Quem da doença real,
de longe, enfermo se sente,
por segredo natural
fica são, vendo somente
um volátil animal.
Do mal que Amor em mim cria,
quando aquela Fénix vejo,
são de todo ficaria;
mas fica-me hidropesia,
que quanto mais, mais desejo.
Da bívora é verdadeiro
se a consorte vai buscar,
que, em se querendo juntar,
deixa a peçonha primeiro,
porque lhe impede o gerar.
Assi quando me apresento
à vossa vista inumana,
a peçonha do tormento
deixo a parte, porque dana
tamanho contentamento.
Querendo Amor sustentar-se,
fez üa vontade esquiva
düa estátua namorar-se;
despois, por manifestar-se,
converteu-a em mulher viva.
De quem me irei queixando,
ou quem direi que m'engana,
se vou seguindo e buscando
üa imagem que, de humana,
em pedra se vai tornando?
De üa fonte se sabia,
da qual certo se provava
que, quem sobr' ela jurava,
se falsidade dizia,
dos olhos logo cegava.
Vós, que minha liberdade,
Senhora, tiranizais,
injustamente mandais
quando vos falo verdade
que vos não possa ver mais.
Da palma se escreve e canta
ser tão dura e tão forçosa,
que peso não a quebranta,
mas antes, de presunçosa,
com ele mais se levanta.
Co peso do mal que dais,
a constancia que em mim vejo
não somente ma dobrais,
mas dobra-se meu desejo,
com que então vos quero mais.
Se alguém os olhos quiser
as andorinhas quebrar,
logo a mãe, sem se deter,
üa erva lhe vai buscar,
que lhe faz outros nascer.
Eu, que os olhos tenho a tento
nos vossos, que estrelas são,
cegam-se os do entendimento,
mas nascem-me os da razão
de folgar com meu tormento.
Lá para onde o sol sai
descobrimos, navegando,
um novo rio admirando,
que o lenho que nele cai,
em pedra se vai tornando.
Não se espantem disto as gentes;
mais razão será que espante
um coração tão possante
que, com lágrimas ardentes,
se converte em diamante.
Pode um mudo nadador
na linha e cana influir
tão venenoso vigor
que faz mais não se bulir
o braço do pescador.
Se começam de beber
deste veneno excelente
meus olhos, sem se deter,
não se sanem mais mover
a nada que se apresente.
Isto são claros sinais
do muito que em mim podeis:
nem podeis desejar mais;
que, se ver-vos desejais,
em mim claro vos vereis.
E quereis ver a que fim
em mim tanto bem se pôs?
Porque quis Amor assim
que, por vos verdes a vós,
também me vísseis a mim.
Dos males que me ordenais,
que inda tenho por pequenos,
sabei, se mos escutais,
que ja não sei dizer mais,
nem vós podeis saber menos.
Mas já que a tanto tormento
não se acha quem resista,
eu, Senhora, me contento
de terdes meu sofrimento
por alvo de vossa vista.
Quantos contrários consente
Amor, por mais padecer!
Que aquela vista excelente,
que me faz viver contente,
me faça tão triste ser!
Mas dou este entendimento
ao mal que tanto me ofende,
como na vela se entende
que, se se apaga co vento,
co mesmo vento se acende.
Exprimentou-se algüa hora
da ave que chamam Camão,
que, se da casa onde mora
vê adúltera a senhora,
morre de pura paixão.
A dor é tão sem medida,
que remédio lhe não val;
mas, oh ditoso animal,
que pode perder a vida
quando vê tamanho mal!
Nos gostos de vos querer
estava agora enlevado,
se não fora salteado
das lembranças de temer
ser por outrem desamado.
Estas suspeitas tão frias,
com que o pensamento sonha,
são assi como as Harpias,
que as mais doces iguarias,
vão converter em peçonha.
Faz-me este mal infinito
não poder já mais dizer,
por não vir a corromper
os gostos que tenho escrito
cos males que hei-de escrever.
Não quero que se apregoe
mal tanto para encobrir,
porque, enquanto aqui se ouvir,
nenhüa outra coisa soe
que a glória de vos servir.
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