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A martelo

por cheia, em 06.11.20

Mazelas da guerra

   Vinho feito a martelo

 

Continuação

 

Como de vez em quando íamos a General Machado, aproveitávamos para saborear o prato preferido e esquecer o rancho e as rações de combate

Um belo dia, estávamos sentados num restaurante, a saborearmos os pregos, quando demos conta, na mesa ao lado, dois senhores revelavam como fazer vinho a martelo, cuja receita era: água, álcool, barro e palha

O barro para dar a cor e a palha o sabor, e temos um vinho que é um amor

De outra das vezes que fomos a General Machado, acompanhou-nos um Sargento, que fez uma paragem numa oficina auto, para pagar um bidon de 200 litros de lubrificante

De seguida mandou-nos subir para a viatura, e eu disse-lhe que faltava carregar o bidon, ao que me respondeu: “não é para carregar agora”

Algum tempo depois, fui à secretaria, tratar já não sei de quê, e o Sargento disse para um Soldado: ” o Furriel Costa, é que podia ajudar aqui na Secretaria”, ao que lhe respondi, que a minha esferográfica era a G3

Quando fui marcar as férias de 1971, ele disse-me: “sabe, acabamos a comissão em agosto, nem todos podemos gozar os 30 dias, só pode gozar 10 dias”

Aproveitei para ir conhecer o Lobito e Benguela. Fui de boleia, de um camionista, de Nova Lisboa ao Lobito, dois mil quilómetros a descer, quase só falámos da situação em Angola, ambos estávamos de acordo que tinha de se encontrar uma maneira de acabar com a guerra

Passámos por uma plantação de cana-de-açúcar, a perder de vista, da Companhia Agrícola do Cassequel, e uma outra de sisal

No Lobito, fiquei alojado na FNAT- Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, era o hotel mais barato

Fiz amizade com dois civis, foram umas férias agradáveis

A temperatura da água do mar devia rondar os 30 graus, ficávamos 3 ou 4 horas dentro de água

Tínhamos o cinema Flamingo, onde todos os dias íamos ao cinema, no salão de entrada estavam em exposição automóveis Japoneses. Junto existia uma colónia de flamingos

O calor era quase insuportável, não conseguíamos dormir, tomávamos banho antes de nos deitarmos, não nos enxugávamos, mas mesmo assim não conseguíamos adormecer

Um dia resolvemos ir dormir para a praia, levámos os lençóis, dormimos como pedras, foi uma experiência maravilhosa

Dedicámos um dia para irmos conhecer Benguela, que não fica muito longe do Lobito

O Lobito tem um porto de águas profundas, um dos melhores de África

No regresso utilizei o Caminho de Ferro de Benguela, construído entre 1903 e 1929, com uma extensão de 1.345 km, atravessa Angola de Este a Oeste

 

Foram umas 12,13 horas, para vencer a distância entre o Lobito e General Machado. Não sei quantas carruagens puxadas por uma máquina a vapor, em todas as estações carregavam lenha, para alimentar a caldeira

No início utilizaram a floresta autóctone, mais tarde tiveram de fazer plantações de eucaliptos, junto de cada estação.

Enquanto estivemos no Umpulo, fizemos diversas operações, numa delas fomos transportados de helicóptero, nos pumas, não podíamos levar mais de 20Kg de equipamento

Optei por não levar mantas, levei só dois panos de tenda, bem me arrependi

Só conseguia dormir até à meia-noite, enquanto a terra estava quente, depois tinha de me levantar e fazer exercícios pra aquecer

Outros cortaram nos mantimentos, enquanto eu levei um saco de plástico com pão

No último dia da operação, de manhã, quando estávamos a tomar o pequeno-almoço, o Capitão, que já não tinha quase nada para comer, viu o saco com umas migalhas de pão, pediu-mas para fazer umas sopas

Quando os dois helicópteros abordaram o acampamento que íamos atacar, saltámos de uns dois metros de altura, o carregador, da minha G3, saltou da arma, o que prova que o equipamento estava velho e cheio de folgas, valeu-nos o inimigo já se ter ido embora, tinham queimado tudo, ainda havia algum fumo

Era difícil manter as operações em segredo, para mais tínhamos uma povoação por perto

Uma meia-dúzia de miúdos, começou por pedir os restos para comerem, mas com o tempo foram ficando todo o dia no acampamento, lavavam os pratos aos soldados, quem é que não gosta de criados!

Depois, um condutor passou a levá-los, todas as noites, à povoação

Passado algum tempo, a viatura acionou uma mina, e um dos miúdos ficou com os dedos, de uma mão, cortados

Foram feitas algumas prisões, gerou-se um mal-estar, um Furriel, para chamar à atenção, encostou a G3 à face e disparou para o ar, ajudando a desanuviar o ambiente

Nunca mais acionamos nenhuma mina!

As minas são das coisas piores que inventaram. Há muito que falam em proibi-las, mas parece-me que nunca chegarão a acordo

De vez em quando, infelizmente, aparecia alguém com um pé desfeito ou a pedirem-nos para desativarmos minas antipessoal, que tinham detetado

Constituídas por 200 gramas de trotil, um detonador e uma caixa de madeira têm causado tantos mutilados

Angola foi muito martirizada com a “sementeira” de minas antipessoal, ao ponto da Princesa Diana se interessar pelo drama dos mutilados, fomentando e patrocinando o fabrico de próteses, causa, que um dos seus filhos tem continuado a apoiar

Nós, felizmente, nunca acionamos nenhuma mina antipessoal, porque desde a instrução, que todos estávamos bem avisados para nunca utilizarmos trilhos, por muito trabalho que dessem a abrir: cortar a vegetação, com uma catana, para podermos caminhar, era preferível que perder um pé, nem nunca utilizámos os nossos trilhos mais do que uma vez

Os meus camaradas de curso, que tiveram as notas mais baixas, foram os escolhidos para tirarem um curso de minas e armadilhas, em Tancos.

Continua

   

 

 

 

 

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publicado às 07:59


14 comentários

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De Robinson Kanes a 06.11.2020 às 10:14

Brutal!
Um Abraço,
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De cheia a 06.11.2020 às 14:15

Estou muito grato, por estar a seguir estes relatos.

Um abraço,
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De Luísa de Sousa a 06.11.2020 às 12:15

Mais um relato para não esquecer
Tive amigos que estiveram no Ultramar e que nos contaram situações parecidas
Gostei muito

Beijinhos
Feliz Dia
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De cheia a 06.11.2020 às 13:51

É pena que este período da nossa História não seja divulgado e estudado. Nós tivemos muita sorte. Mas em muitos acampamentos, principalmente na Guiné, mal saíam dos abrigos subterrâneos choviam balas e granadas de morteiro, fazendo muitos mortos e estropiados.

Feliz dia e bom fim-de-semana!

Beijinhos
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De Francisco Carita Mata a 06.11.2020 às 12:35

Dá gosto ler, mas ao mesmo tempo dói. É, certamente, penoso lembrar. As guerras não têm qualquer sentido. Só ganha quem as "alimenta".
Muita Saúde!
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De cheia a 06.11.2020 às 14:12

É muito penoso voltar a lembrar tudo isto, mas ao mesmo tempo é bom que todos saibam que a guerra, nas Colónias, provocou muitas mortes, muitos estropiados, e continuamos a pagar, em atraso, o que na guerra foi desperdiçado.

Bom fim-de-semana!
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De Francisco Carita Mata a 06.11.2020 às 17:01

Sempre que possa e se sinta com capacidade, relate os acontecimentos que viveu. É uma parte da nossa História, que faz parte da sua história de Vida.
Saudações amistosas.
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De cheia a 06.11.2020 às 18:22

Muito obrigado pelas encorajadoras palavras.

Boa noite!
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De MJP a 06.11.2020 às 14:02

Grata pela partilha, José! :))
Bom fim-de-semana!
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De cheia a 06.11.2020 às 14:17

Muito obrigado por estar a seguir estes relatos.

Um resto de dia feliz e um bom fim-de-semana!
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De Rute Justino a 06.11.2020 às 18:23

Muito bom
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De cheia a 06.11.2020 às 18:24

Muito obrigado!

Bom fim-de-semana!
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De jabeiteslp a 07.11.2020 às 08:32

Bom fim de Semana de pandemia
com alegria
e saúde da boa pra vocês
neste bom dia
que se compõe José
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De cheia a 07.11.2020 às 11:40

Um bom fim-de-semana, também, para vocês, com alegria!

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