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As mazelas da guerra
Continuação
A queda do último helicóptero
Todos os azares vinham ter connosco
O último helicóptero, daquela série, avariou
Ficou sem leme, tendo o piloto conseguido imobilizá-lo num morro
Felizmente, não houve feridos: oficiais e piloto saíram ilesos
Para guardar o helicóptero, fomos mobilizados
A seguir ao almoço, um pelotão foi guardá-lo
Ao fim do dia pediram-nos, pelo rádio, para lhes levarmos água
A minha secção foi mobilizada para, ao nascer do sol, sairmos com os garrafões de água que conseguíssemos carregar
Quando chegámos, andavam a lamber o capim
Também tinham utilizado os componentes acrílicos do helicóptero, para durante a noite, captarem alguma água
Ninguém sabia como o tirar dali
O Alferes responsável pela proteção estava preocupado, com aquela operação, e com razão
Do Batalhão só lhe diziam que estavam a estudar o problema
Respondeu-lhes com um ultimato, se não encontrassem uma solução, dentro de um prazo de que não me lembro, o helicóptero seria desmantelado de maneira a ser levado, pelos trabalhadores da fazenda, para as viaturas, que o levariam para o Batalhão
Como não recebeu nenhuma resposta, mobilizou homens e ferramentas para a destruição, do mesmo
Mas, não conseguiram dividir o motor, que era muito pesado
Ordenou que arranjassem paus, para colocarem debaixo de cada bocado, para ver se o conseguiam levantar
Tudo testado, o mais difícil foi gerir aquela operação, pelo morro abaixo, em que alguns não queriam fazer força ou já não aguentavam mais
Estava ultrapassado mais um pesadelo
O Natal estava a chegar, seria a noite mais longa do ano.
Continua
Mazelas da guerra
Continuação
Fazenda SantaCruz dos Dembos
Um procedimento, que me chamou à atenção, foi o de que, quando caminhavam, nas picadas, e avistavam as nossas viaturas, as pessoas afastavam-se das bermas uns 10 a 20 metros
Não consegui saber a razão, mas suponho que deve ter a ver com procedimentos menos corretos, no início da guerra
Para quem não saiba, quando a guerra começou, em 1961, no Norte de Angola, houve muita violência de parte a parte
Por isso, talvez, ainda, se lembrassem dos tempos negros do início da guerra
Durante os 9 meses que estivemos no Norte de Angola, acho que nenhum militar da minha companhia teve relações sexuais com as mulheres das povoações, ao contrário do que aconteceu, quando fomos para a zona de Nova Lisboa
Dizia-se que o avião que levava o pré, para Maquela do Zombo, também transportava as prostitutas
Durante os 9 meses que estivemos naquele acampamento, nunca lá vi nenhum civil, evitavam a nossa companhia
Mesmo assim tínhamos, todos os dias de içar e arriar a Bandeira Nacional, às 6 e 18 horas, para que aprendessem as suas cores, coisa que não fomos capazes de fazer em cinco séculos, tal como não lhes conseguimos ensinar a nossa língua
Antes do Natal de 1969, ainda estivemos 2 meses destacados na Fazenda Santa Cruz dos Dembos, uma fazenda de café, cuja variedade de cafeeiros tinha de ter sombra
Uma mata tão densa, que quase não se via o sol, desbastavam-na, deixando algumas árvores muito altas, para fazerem sombra aos cafeeiros
Na fazenda trabalhavam cerca de 70 trabalhadores vindos do centro de Angola, porque os do Norte só se dedicavam à construção de armadilhas para caça e pesca
Estes homens estavam a abrir uma picada, cortando arvores, que 2 homens não conseguiam abraçar, só com machados
Quem os comandava, um Cabo-verdiano, estava constantemente a dizer que queria ouvir a sinfonia dos machados
Nós tínhamos como missão dar-lhes proteção, como estavam destacados 2 pelotões, dia-sim-dia-não, lá íamos
Num dos dias em que ficámos de descanso, o outro pelotão sofreu uma emboscada, uma rajada atingiu 2 soldados, que tiveram de ser evacuados, para Lisboa, felizmente ficaram bem
A Companhia tinha um Furriel Miliciano com a especialidade de enfermeiro, coadjuvado por três ou quatro maqueiros, que sabiam dar injeções e fazer pensos
O maqueiro que estava connosco era louco por borboletas, passava o tempo todo a injeta-las, para as embalsamar
Um dia teve de dar uma injeção, ao Alferes do meu pelotão, a qual lhe causou uma grande infeção, teve de ser internado, porque a seringa não estava devidamente desinfetada
Já não me lembro se os trabalhos passaram a ser dia-sim-dia-não, o que me lembro é um dia estava com o outro Alferes, e depois do almoço, perguntou-me se era voluntário para ir com ele, porque queria saber para onde ia a picada, respondi-lhe que na tropa não era voluntário para nada
Ordenou-me que fosse com ele, mais dois soldados e um guia munido de catana, para abrir o caminho, para que pudéssemos penetrar naquele labirinto.
As horas foram-se passando, já não sabíamos como sair dali, começámos por marcar as árvores, não adiantou, a seguir foi por votação, quando três diziam para onde era, lá íamos, mas também não resultou
Disse-lhe que o melhor era fazermos fogo para o ar, na esperança de que os nossos camaradas, que tinham ficado a dar proteção aos trabalhadores, nos respondessem
Felizmente resultou, conseguimos, antes de o sol se pôr, sair do labirinto
Caso estivesse por ali perto, algum inimigo, tinha-nos apanhado à mão, porque a nossa desorientação era total
Monangambé, que significa contratado, é um poema de António Jacinto, musicado em 1960, às escondidas, por Rui Mingas
Letra de Monangambé
Naquela roça grande
não tem chuva
é o suor do meu rosto
que rega as plantações;
Naquela roça grande
tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue
feitas seiva
o café vai ser torrado
pisado,
torturado,
negro da cor do contratado
Negro da cor do contratado!
Perguntem às aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:
Quem se levanta cedo?
quem vai à tonga?
quem traz pela estrada longa
a tipóia ou o cacho de dendém?
Quem capina
e em troca recebe desdém
fuba podre,
peixe podre,
panos ruins,
cinquenta angolares
porrada se refilares”?
Quem?
Quem faz o milho crescer
E os laranjais florescer?
- Quem?
Quem dá dinheiro para o patrão comprar
máquinas,
carros,
senhoras
e cabeças de pretos para os motores?
Quem faz o branco prosperar
ter barriga grande
ter dinheiro?
_ Quem ?
e as aves que cantam
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:
- “ Monangambééé…..”
Ah! Deixem-me ao menos
subir às palmeiras
Deixem-me beber maruvo ( seiva de palmeira, retirada junto às folhas, como se faz para retirar a resina)
E esquecer
diluído nas minhas bebedeiras
Já tinha ouvido a canção dos contratados, mas nunca me tinha cruzado com eles
Quis o destino que primeiro visse o que faziam e como eram tratados, e menos de um ano depois, sem contar, assistisse ao seu recrutamento
Estava nos arredores de Nova Lisboa, quase pôr-do-sol, quando vi um grande alvoroço, numa das povoações dos arredores da cidade
Fui até lá, fiquei à distância a observar. Estavam todos reunidos, mulheres e homens, as mulheres agarravam-se aos seus homens, gritavam e choravam, o Soba ia correndo olhar por todos, de repente apontava para um, que imediatamente entrava no autocarro, que os iria levar, sem qualquer contestação
Assim que o autocarro ficou cheio, fecharam as portas. Disseram-me que partiriam na madrugada do dia seguinte
Diziam que aqueles homens, quando regressassem, os que o fizessem, pouco ou nada trariam, porque tinham de pagar a alimentação, o alojamento, etc.
Continua
As mazelas da guerra
Continuação
O medo
Na primeira noite que dormimos no mato, o medo era de cortar à faca
No silêncio da noite, o mais pequeno ruído parece um furacão
Também tinha medo, mas estava mais à vontade por já ter dormido algumas vezes nas eiras
Um condutor preferiu dormir dentro da viatura, em vez da tenda
Noite dentro, contatou-me, dizendo que tinha uma cobra dentro da viatura
Lá fui, para ver a cobra, chegados à viatura, vi o limpa-para-brisas a trabalhar
Pedi-lhe para desligar o limpa-para-brisas, que a cobra se ia embora, e nós íamos dormir
Como o limpa-para-brisas era acionado manualmente, o que deve ter acontecido, é tê-lo ligado, ao mexer-se, possivelmente com o joelho
No dia seguinte voltámos ao acampamento, tendo tudo corrido bem
A primeira etapa estava concluída. A partir dali, os relatórios quinzenais seriam emitidos sem sairmos de casa, até porque, em breve, ficaríamos desfalcados, com dois pelotões destacados, para a zona do Quitexe
Antes de ir para o Quitexe, a minha seção e outra foram mobilizadas para darem proteção a uma coluna de camiões civis, entre Maquela do Zombo e São Salvador do Congo
Lá fomos, eu e o meu amigo Ramos, camarada de curso, que, infelizmente, viria a morrer, já depois de termos acabado a comissão, com as nossas seções montadas em duas viaturas equipadas com duas metralhadoras pesadas Breda, instaladas num dispositivo, em que as podíamos rodar trezentos e sessenta graus
No regresso vimos um elefante, que atravessou a picada à nossa frente, escondendo-se, imediatamente, na densa mata
Foi a prenda que tive no dia dos meus 24 anos, uma prenda diferente e única, vimos um elefante, em liberdade, no seu habitat
Depois do reconhecimento da nossa zona de ação, fomos visitar uma povoação, onde nos receberam muito bem, e nós oferecemos-lhes alguns produtos das rações de combate de que não gostávamos
Tive oportunidade de falar com um homem, que tinha 20 mulheres, disse-me que todas se davam muito e que obedeciam, todas, à mais velha, eram elas que trabalhavam nas terras, a ele cabia-lhe fazer e colocar armadilhas para caça e pesca
Que os homens quanto mais mulheres tivessem, mais ricos eram, e que quando ficavam grávidas deixavam de ter relações sexuais até terem os bebés
As mulheres faziam as sementeiras, e no caso dos amendoins tinham de as guardar, para que os macacos não os comessem
Outra tarefa a que as mulheres se dedicavam era, com sachos, apanhar ratos, que eram muito apreciados.
Aproveitei para pegar num bebé, tiram-me uma fotografia, enviei-a para a minha mulher que, apesar dos poucos meses da chegada a Angola, não a apreciou, o que seria se já tivessem passado mais de nove meses!
Continua
Mazelas da guerra
Continuação
A primeira baixa
Um soldado, ao não cumprir com o que lhe tinha sido ensinado: que nunca se desencravavam armas sem ser ao ar livre e com o cano para cima, disparou, sem querer, contra um camarada que estava sentado na cama, a escrever para a família
A bala acertou num porta-moedas, que estava no bolso da camisa, fazendo com que os danos tenham sido fatais
Na sede da Companhia, na Fazenda Costa, o tempo era queimado a fazer partidas uns aos outros
O Furriel de Transmissões, que tinha acabado de chegar à Companhia, foi convencido a ficar, num buraco, por duas horas, com um saco à espera dos gambuzinos
Também fiz parte de uma equipa formada, a pedido de uns soldados que nunca tinha visto ananases, para irmos aos ananases
Munidos de um carrinho de mão e uma enorme escada, partimos de manhã, para uma mata fechada, depois de duas horas e devido à dificuldade de manobrar as ferramentas, um dos soldados sugeriu que ficasse para outro dia, por estar muito cansado, a apanha dos ananases, com o que concordei
Uns dias depois, o meu pelotão foi destacado para a zona do Quitexe, numa patrulha atravessámos uma plantação de abacaxi, aproveitei para lhes mostrar a planta e fruto, a que muita gente chama ananás
Foi aí, que eles se sentiram, ainda, mais cansados por terem andado aos ananases com um carrinho de mão e uma enorme escada
No início, do Pelotão que estava destacado na fronteira, vieram à sede da companhia, quatro ou cinco, num jeep, penso que para levarem o correio entre outras coisas
Uns que se aperceberam do sucedido, aproveitaram para angariar uns trocos para a cerveja, dizendo-lhes que me tinham comprado uma bicicleta, mostrando-lhes uma bicicleta velha, que existia no acampamento, para lhe ir levar o correio, mas que tinham de contribuir. Ainda conseguiram arranjar cem angulares
Logo eu que, infelizmente, nunca tive tempo para aprender a andar de bicicleta.
Mas, não passámos todo o tempo a pregar partidas uns aos outros.
Tivemos de fazer uma operação, para sabermos como fazer os relatórios quinzenais
A primeira operação foi planeada com todo o cuidado, tudo era desconhecido, não sabíamos o que íamos encontrar
Levámos viaturas a gasolina, muito atentos à picada, por causa das minas anticarro, o que fez com que levantássemos uma enorme mina anticarro, já desativada, o que pressupõe que já teria muitos anos de enterrada.
Ganhámos o dia, já tínhamos um trofeu.
Continua
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